A Partitura Sinthoma é uma versão do Seminário XXIII de
Lacan e, ao mesmo tempo, não é. É o catálogo de uma amostra, de uma performance,
e ao mesmo tempo não é. O autor é o próprio Jacques Lacan e às vezes ele não é.
Mesmo forçando apenas a idéia, é um livro e não é. Quem ainda não está
suficientemente informado sobre os destinos extraordinários dos textos em geral
e, em particular, da obra lacaniana, pode se surpreender com essas primeiras
linhas.
Ricardo
Rodríguez Ponte, psicanalista argentino, traduz para o espanhol, numa versão
crítica, minuciosa e comparativa, a transcrição do Seminário Le sinthome de Jacques Lacan,
psicanalista francês, dedicado à obra de James Joyce, escritor irlandês. Dora
García, artista espanhola, produz um experimento admirável sobre as relações
entre palavra, voz, escrita, tradução, imagem, som e dança no Museu Reina Sofia,
em Madri, na Espanha, entre os meses de março, abril e maio de 2018, intitulado
Segunda vez que é sempre a primeira, uma performance que produz e reproduz o
livro A Partitura Sinthoma.
Tentando
simplificar este quebra-cabeças fenomenal
e da perspectiva da psicanálise, este livro é uma tradução - ou uma pluritradução-
do Seminário XXIII para um tumulto sistemático de línguas que compõem uma
partitura com a qual interpretar os textos lacanianos a cada vez.
O exercício
performativo daqueles meses no Reina Sofia, conjurou o aqui e agora dos
leitores com o eterno presente da escrita, ao lado da leitura em voz alta, a
narração, a dança, a música, as ilustrações, as fotografias, os espaços,
objetos, os sujeitos: um performerimplicado lê fragmentos de uma classe de Le sinthoma, enquanto um segundo executa
uma coreografia incomum seguindo os desenhos previamente feitos por García. A voz recupera o protagonismo que teve no
curso dos seminários de Lacan, cujos textos são as versões escritas de suas
lições, nas quais sua voz fica sepulta. E com isso seu tom, sua cadência, sua
ênfase, seus desmaios, seus silêncios, suas interrupções, sua cor, sua
temperatura e sua interação afetiva com um futuro público. Tudo adquire um
sentido teatral ou musical.
As
partituras são sempre interpretadas depois, porque a interpretação sempre vem
"depois" da partitura, mas ao mesmo tempo elas são sempre
interpretadas pela "primeira vez" porque cada performance é sempre
diferente, outra, a cada vez. Foi assim que Dora García pensou num mecanismo
que leitores, releitores e tradutores usam o tempo todo toda vez que pegamos um
texto intimamente.
Essa versão
do Seminário de Lacan foi realizada ao vivo, em grupo, com performers e
performados, de maneira igualmente coletiva e laboriosa, mesclando a leitura
com a releitura, e ambas com a escrita; intuição com a formulação e verificação
de hipóteses de interpretação; a análise das relações internas entre as
diferentes partes do texto com as relações que mantém com outros textos que lhe
estão relacionados ou com os quais está ligado; a interpretação com a tradução
e assim por diante. Trabalho que também dá a palavra novamente à palavra,
porque a fala, a leitura e a narração permitem que todas essas diversas
atividades interajam e se conectem umas com as outras no coletivo que as
realizou. O texto funciona como uma partitura, e leitura e tradução como
interpretação.
Ricardo
Rodríguez Ponte, junto com muitos psicanalistas e tradutores, dentro da Escuela
Freudiana de Buenos Aires, lidaram generosamente para construir uma comunidade
de leitores em torno dos textos de Jacques Lacan, numa teimosa resistência a
qualquer tentativa de clarificação definitiva das trevas e os múltiplos
meandros de uma obra e sua difusão.
A
Partitura Sinthoma é um
livro. É uma versão do Seminário XXIII de Lacan sobre a versão crítica:
estabelecimento, tradução e notas de Rodríguez Ponte e é o catálogo de uma
performance de Dora García que nos convida a "ler" Lacan lendo Joyce,
mais uma vez.
Carlos Marcos
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